Monteiro Lobato: Eugenia, ou a bela raça

"A eugenia está presente nas reflexões filosóficas desde Platão. Podemos ler na República que os casamentos se farão entre os melhores indivíduos, a fim de manter a pureza da raça e que as crianças defeituosas serão sacrificadas: “— Estes prepostos hão de conduzir ao lar comum os filhos dos indivíduos de elite, confiando-os a nutrizes residentes à parte num bairro da cidade . Quanto aos filhos dos indivíduos inferiores, e mesmo os dos outros, que apresentarem alguma deformidade, escondê-los-ão em local proibido e secreto, como convém.“ (PLATÃO, 1965, v. 2, p. 22). Explica-se a eugenia em Platão pelas necessidades da guerra, pois o soldado tinha de ser perfeito.

Os procriadores serão escolhidos entre os melhores, os que estiverem na flor da idade, com o fito de se chegar, um dia, a se ter apenas cidadãos bons e belos: “[...] formar uniões ao acaso, ou cometer falta do mesmo gênero, seria impiedade numa cidade feliz e os chefes não a suportarão.” (PLATÃO, 1965, v. 2, p. 19). Os magistrados procurarão melhorar a raça e controlar as relações entre os indivíduos inferiores, mediante casamentos escolhidos, pois os maus casamentos dão origem a uma prole inferior.

Comum nos escritos dos utopistas depois de Platão, a eugenia foi sistematizada como disciplina de estudo pelo primo de Darwin, Francis Galton, que, em 1885, criou a cadeira Eugenia, no University College de Londres. A eugenia prevê a existência de indivíduos indiscutivelmente superiores e outros, inferiores, admitindo que se deviam propagar apenas os superiores. Os tipos indesejáveis seriam objeto de esterilização, sob controle do Estado. Muitos estados americanos, no início do século XX, criaram leis nesse sentido. A esterilização é a proposta do romance de Lobato, O Presidente Negro (1926), como mecanismo susceptível de exterminar os negros americanos.

As idéias eugênicas reaparecem em vários momentos da obra lobatiana, em especial no livro O Presidente Negro (1926) e na carta aberta “O voto secreto”, anexada ao livro América (1932). Neste último livro, o personagem Mr. Slang assevera: “Temos de chegar à Eugenia. Esta sim. Esta será o grande remédio, o depurativo curador das raças. Pela Eugenia teremos afinal o homem e a mulher perfeitos — perfeitos como os cavalos e éguas de puro sangue.” (v. 9, p. 208).

Embora com algumas exceções (“A violeta orgulhosa”, de Histórias Diversas, por exemplo), o negro na obra de Lobato é sempre representado em posição subalterna. Apesar da libertação dos escravos em 1888, Tia Nastácia é uma doméstica em tempo integral, o que pouco a distingue da escrava que fora quando moça, como aparece em Geografia de D. Benta (1982, p. 1079): “— Tia Nastácia conta que a mãe dela veio da África, dum lugar chamado Angola — lembrou Narizinho. — Também conta que foi escrava sua, quando moça, vovó.”

Em Reinações de Narizinho, podemos ver a comparação da negra com um animal de estimação: “Na casa ainda existem duas pessoas — Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo”.

Em vários momentos da obra, a etnia negra é desqualificada, pelas intervenções de Emília, desqualificações que poderiam se converter num Leitmotif, tal sua recorrência. Citemos, ao acaso, o assombro de Tia Nastácia ao ouvir Peter Pan falar do mundo das fadas. Emília insinua-se, agressivamente:

— Cale a boca! — berrou Emília. — Você só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda... — Mais respeito com os velhos, Emília! — advertiu Dona Benta. — Não quero que trate Nastácia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fora. (LOBATO, 1982, p. 591)

Como se observa, a emenda ficou pior que o soneto. Nesse mesmo trecho, o Visconde de Sabugosa, com a sua cientificice, põe-se a falar dos pigmentos que deixaram os negros retintos. E Emília, mais uma vez, retoma suas agressões, terminando por botar a língua a Tia Nastácia, no que representa bem o menino filho de senhor de escravos, que estabelece uma relação s ádica com os negros, como retrata Machado de Assis e Gilberto Freyre: “Quer dizer — observou Emília — que se os pigmentos de tia Nastácia fossem cor de burro quando foge, ela não seria negra e sim uma burra fugida...” (LOBATO, 1982, p. 591).

Assinalemos certo prazer sádico em Emília em sempre trazer sempre à baila a discussão sobre a cor da sociedade brasileira.

Em carta a Rangel, de 3/2/1908, Lobato escreve o seguinte trecho, censurado em edições ulteriores da correspondência
, aqui computado em extenso, por tratar-se de documento de difícil acesso: “Que diferença de mundos! Na Grécia, a beleza; aqui, a disformidade. Aquiles lá; Quasímodo aqui. Esteticamente, que desastre foi o cristianismo com sua insistente cultura do feio!”. A seguir, o trecho censurado:

Estive uns dias no Rio. Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral — e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas — todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiros e razidos à força para a escravidão vingaram-se do português da maneira mais terrível — amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios á tarde. E como vão apinhados como sardinhas e ha um desastre por dia, metade daquela gente não tem braço ou não tem uma perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?”. “Desastre da Central”. Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança! Talvez a salvação venha de S. Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe. Há tempos assisti em Taubaté a uma cena muito ilustrativa do que é essa defesa na América do Norte. Um americano desceu do trem e foi ao restaurante Pereira comer qualquer coisa. Sentou-se e pediu. Nisto entra um guarda-freio de boné na orelha, gaforinha e senta-se-lhe ao pé. O americano ergue-se de impulso, atira a cadeira e some-se no trem. O país equiparava-o ao guarda-freio, mas ele não aceitava o presente. Filosoficamente me parece horrível isto — mas certo do ponto de vista racial. (LOBATO, 1944, p. 133).

Como podemos notar, de acordo com essa carta, na ótica do autor, o sujeito das transformações esperadas para o novo Brasil seria o imigrante branco. É certo que essa carta é de 1908, data ainda próxima à escravidão, quando os negros estão em uma situação difícil. Convém não esquecer, porém, que desde a extinção oficial do tráfico, com a Bill Aberdeen, o governo imperial decretou a Lei de Terras, proscrição da propriedade pela simples ocupação, obrigando o posseiro à compra ou legitimação da posse. Essa lei teve efeitos perversos, pois previa o acesso à terra através da compra por preço elevado, visando destiná-las prioritariamente aos grandes proprietários (e assim recompensá-los pela extinção do tráfico) e negando o acesso à terra aos alforriados e futuros colonos. Quando foi proclamada a República, ao mesmo tempo que Rui Barbos a queima todos os documentos relativos à escravidão, os negros, os únicos que até então tinham trabalhado no país — são sumariamente impedidos de trabalhar e substituídos pelos imigrantes. Como afirma Carrion (2002): “Em sintonia com a Lei de Terras, foi elaborada uma legislação de colonização que subsidiava com recursos públicos a vinda de imigrantes europeus para substituir os escravos que não mais viriam.”

As mesmas idéias sobre a imigração reaparecem em carta de 1946, dessa vez com referência à Argentina: “Semear homens europeus de boa qualidade nas terras desertas da América é criar mundos. Com os músculos do imigrante entra também cérebro — e o r endimento de um cérebro importado é muitas vezes fabuloso.” (LOBATO, 1986a, p. 120). Ao falar em “contra-Grécia”67, nota-se o eurocentrismo de Lobato, cujo parâmetro é o mundo helênico clássico, em detrimento da miscigenação americana. É o lado “apolíneo” do pensamento de Lobato, que em termos de arte se expressou no artigo sobre a pintura de Anita Malfatti. Segundo Nelson Werneck Sodré, o eurocentrismo é uma das faces da ideologia do colonialismo, que utiliza a supremacia racial como justificativa para a dominação e exploração econômica.

Convém notar que a campanha pelo saneamento levada a cabo por Lobato traduziu-se no livro Problema Vital, que trazia, em sua primeira edição, a informação de que era patrocinado pela Sociedade Eugênica de São Paulo e pela Liga Pró-Saneamento do Brasil. Ess e tipo de agr emiação floresceu no início do século XX, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, espalhando-se por toda a Europa e alcançando o Brasil. Os artigos jornalísticos de Lobato participam da eugenia em seu caráter positivo, ou seja, o esforço para melhorar geneticamente o ser humano, enquanto em O Presidente Negro verifica-se a eugenia negativa, isto é, a que visa à exterminação dos indesejáveis, controlando cientificamente os mecanismos de reprodução da raça.

O fragmento de carta acima é de 1908. Lobato, porém, continua com as mesmas idéias raciais no final de sua vida, conforme podemos ler numa carta de 1935, dirigida ao interventor da Bahia, Artur Neiva, onde Lobato fala de sua visita a Bahia, para divulgação do seu programa de petróleo. Referindo-se ao povo baiano, escreve:

Sua Bahia, meu caro Dr. Neiva, possivelmente enfeitiçou-me. [...] Como é caleidoscópica!
Mas que feio material humano formiga entre tanta pedra velha!A massa popular é possivelmente um resíduo, um detrito biológico. Já a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas. [...] (LOBATO, 1986a, p. 191).

Essas idéias são repassadas também para as crianças. Em Histórias do Mundo para as Crianças (1982, p.1574) pode-se ler:

— Qual a principal dessas raças, vovó? — perguntou a menina.
— A ariana, evidentemente, embora eu seja um tanto suspeita para afirmar isso. Se eu fosse semita, é possível que tivesse uma opinião diversa. Em todo o caso os arianos foram os primeiros a domesticar o cavalo selvagem, o boi e o carneiro.
Conseguiram assim criar as bases da civilização pastoril.

É isso!

Fonte:
SUELI APARECIDA TOMAZINI BARROS CASSAL. "O BRASIL VISTO VERTICALMENTE: UMA CONSTELAÇÃO CHAMADA MONTEIRO LOBATO". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de doutora em letras. Orientadora: PROFª. DRª. ANA MARIA LISBOA DE MELLO. Porto Alegre, 30 de setembro de 2003.

Um comentário:

  1. Oi, Iba. Muito bom artigo.

    Faltou vincular o título a um link - ficou sem referência para ser acessado externamente.

    Um abraço.

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